Cenas de infância: Raquel Matsushita, "História sem Fim" e o medo que atrai
06/03/13 16:01Desta vez, as cenas de infância são lembradas pela designer e escritora Raquel Matsushita, cujas memórias — ainda muito vivas — da produção alemã “A História sem Fim” (1984) apontam para o prazer exercido pelo medo.
Autora de “Fundamentos Gráficos para um Design Consciente” (Musa Editora), ela está lançando o infantil “Eu (Não) Gosto de Você” (Jujuba Editora). A tarde de autógrafos em São Paulo será no próximo sábado, dia 9, das 15h às 18h, na Livraria da Vila (rua Fradique Coutinho, 915).
Vamos ao relato de Raquel:
O evento de assistir a um filme era muito simples na minha infância: se reduzia ao filme e pronto. Não precisava de sala escura, nem fechar a cortina, nem silêncio total. Nem a pipoca fazia falta. Era soltar o filme e começar a aventura. Quando assisti à “História sem Fim” (Die unendliche Geschichte, 1984) era criança, uns 10 anos, talvez. Por isso, não me lembro claramente das cenas e tampouco da história completa.
O que ficou foram as sensações. A melhor de todas, eu conto no final. Primeiro, vamos à mais assustadora: o medo dos monstros. Havia no filme vários monstrinhos que, no decorrer da história, não me amedrontavam tanto. Eu até que encarava numa boa, apesar do frio na barriga. Mas depois, quando o filme terminava e eu voltava pra minha vidinha real, surgia um medo terrível de me deparar com algum daqueles seres.
E o discurso de que “eles não existem” não adiantava. Eles existiam, sim, na minha cabeça. E assim, a fantasia do filme invadia a minha realidade: tinha medo de olhar pelo olho mágico da porta de entrada (alcançá-lo era uma façanha!) e enxergar lá um ser deformado, distorcido à la Escher; tinha medo de abrir as portas de cima do armário (também uma façanha, essa com ajuda do banquinho) e de lá saltar um monstrinho, que pularia bem em cima da minha cabeça.
Com certa taquicardia, me certificava, todas as noites, de que não haveria nenhum monstro desavisado debaixo da minha cama, aguardando o momento exato para entrar em ação. Bem, esses eram os medos que esse filme me evocava. E o medo atrai… Eu via, revia, sentia e ressentia os medos.
E agora, para terminar num outro astral, como prometido, deixo o melhor pro final: a cena do menino voando montado no monstrão-peludo-do-bem, uma sensação maravilhosa de liberdade. Era quase como um sonho, deixar todos aqueles monstros pra trás e flutuar pelo céu seguro.
O cabelo grande do menino e os pelos do monstrão ao vento se tornavam meus. Era minha aquela aventura. Lembro de sentir o mesmo que o menino, com o vento em meu rosto: era a transformação! O poder de sair de um lugar e seguir para outro, por escolha própria. Afinal, não é assim a vida?
Recordar todas essas sensações me traz hoje a vontade de rever o filme em companhia da minha filha de 9 anos. Sim, a vida é cíclica, numa espiral crescente.
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Assista ao trailer de “A História sem Fim”, dirigido por Wolfgang Petersen (“Na Linha de Fogo”, “Troia”) e baseado em romance de Michael Ende:
Sensacional descrição! E o mundo da muitas voltas mesmo, muito bom rever o filme do lado da filha e poder dar a ela uma perspectiva diferente!!! Ensinar que o medo existe sim, na nossa cabeça e fora dela, mas que podemos enfrentar sempre e sonhar sempre!!!