Cenas de infância: Heitor Capuzzo, um macaco travesso e um pato valente
18/03/13 14:13Quando pedi ao professor Heitor Capuzzo que escrevesse um relato sobre um episódio de sua infância que envolveu o cinema, tinha certeza de que viria algo delicioso.
Homenageado no último dia 12 pela Nanyang Technological University (NTU), em Cingapura, com um prêmio de excelência em que os alunos são os eleitores, Heitor contagia quem o conhece com sua paixão pelo cinema.
Só não imaginava, no entanto, que ele me enviaria a reconstituição de uma jornada verdadeiramente extraordinária, de mais de 30 anos, em busca do primeiro filme a que assistiu na vida.
A seguir, a crônica em que ele nos conta essa aventura. Um minicurrículo de Heitor vem ao fim. Desfrutem.
A primeira vez a gente nunca esquece
Comigo tudo aconteceu no final da década de 1950. Claro que eu estava tenso, pois era a minha primeira vez. Naquela época, não era comum a um garoto de quase seis anos ter esse tipo de experiência. Precisei da companhia dos meus pais. Foram eles que escolheram o local, o dia e a hora. Foi à noite, num prédio enorme no bairro próximo a nossa casa. Havia filas para entrar.
Após conversar com uma mulher muito maquiada, através de uma janelinha com grades, papai voltou e entramos no prédio. Estava tudo à meia luz. Um perfume pouco discreto chamou a minha atenção. Uma música ambiente romântica emoldurava aquele lugar estranho com luzes coloridas. Nas paredes, fotos de pessoas fazendo tudo aquilo que eu ainda não havia experienciado, mas que estava agora prestes a conhecer. Alguns homens conversavam em rodinhas. As mulheres eram bem elegantes e contrastavam com as fotos das paredes onde as imagens eram de pessoas quase despidas. Eu estava definitivamente entrando no mundo dos prazeres adultos.
Outra porta se abriu e todos entraram num imenso salão com muitas poltronas vazias. Homens uniformizados guiavam a todos com suas pequenas lanternas. O som da música ambiente ali era mais forte, assim como o perfume. A penumbra ainda envolvia aquele novo espaço onde uma enorme e iluminada cortina vermelha se destacava ao fundo.
Quando todos já se encontravam sentados, o som de um gongo anunciou o que ainda estava por vir. As luzes se apagaram e a cortina iluminada foi se abrindo lentamente ao alto som de uma nova música. Uma tela branca surgiu ao fundo, apresentando imagens em movimento. Não pude me conter com aquela inusitada experiência. Embora meus pais insistissem para que eu prestasse atenção ao que se passava na tela, minha curiosidade vasculhava os mínimos detalhes daquela experiência, até que descobri um facho de luz forte que vinha do fundo, saindo de uma minúscula janela. Perguntei a minha mãe o que era aquilo e ela me explicou serenamente: “É de lá que vem o filme.”
Fiquei muito intrigado. O que seria aquilo que ela chamava de filme, que precisava ficar isolado de todos nós, tentando escapulir por uma janela tão pequenina? Mal sabia eu que essa pergunta tão simples nunca seria totalmente respondida e que a busca dessa explicação iria me marcar para sempre.
O impacto daquelas imagens competia com a excitação que eu estava sentindo com todo aquele ritual. Por isso mesmo tenho poucas lembranças do conteúdo a que assisti. Mas uma série de imagens fragmentadas ficaram encravadas em minha memória. O filme principal situava-se numa pequena cidade habitada por animais. Galinhas, patos, coelhos, cachorros, gansos, raposas conviviam num cotidiano bem organizado e harmônico, até que um macaquinho travesso e maldoso começa a causar sérios problemas e tudo passa a ser destruído. Mas um patinho bem inteligente decide liderar um grupo de bichinhos em busca daquele vilão tão irresponsável.
Na minha memória esse filme era estrelado por animais vivos. Passados uns dez anos (falando agora de 1969), quando comecei a levar a sério o cinema, anotando num caderno escolar todos os filmes, com datas, nome do diretor, ano de produção e um rudimentar critério de avaliação de três estrelas (copiado dos jornais que o papai assinava), resolvi pesquisar sobre aquele título que tanto marcara a minha primeira vez. Perguntei, então, aos meus professores, à minha família, aos meus colegas e amigos, e, com exceção da minha mãe – que confirmou ser o filme com animais e que eu não estava sendo traído pela minha incipiente memória –, nada mais encontrei que pudesse esclarecer minha frustrada busca.
Em 1980, comecei a escrever na imprensa, como crítico de cinema. Tive acesso a vários colegas a quem sempre admirei e, ao perguntar a eles sobre esse filme, ninguém soube me informar. Percebi que deveria ser algo muito obscuro e um dos criticos me disse que, talvez, se tratasse de uma das produções do leste europeu para crianças, possível de se encontrar esporadicamente no mercado exibidor brasileiro daquela época.
Em 1986, tive a oportunidade de lançar o meu primeiro livro, uma introdução ao cinema. Em seu lançamento, o chefe de vendas da editora veio me cumprimentar e, ao comentar sobre o livro, toquei no assunto do filme e, para minha surpresa, ele disse: “Esse filme foi exibido em São Paulo, no Cine República. Era dublado em português, e acredito que o título no Brasil era ‘No mundo das fadas’ – embora não tivesse nenhuma fada no filme. Você tem razão: era estrelado por animais vivos e não se tratava de animação em stop-motion.” Ele pensou um pouco mais e concluiu: “Acredito que era uma coprodução, envolvendo a Itália. No título original havia a palavra ‘paperino’, se não me engano”.
Bem, Paperino é como se chama o Pato Donald na Itália. Imaginem quantos filmes na Itália devem existir com a palavra “paperino”. Mesmo assim, com essas novas informações, voltei a consultar meus colegas críticos, cuja memória enciclopédica tanto resgatou a todos nós na imprensa (estou me referindo precisamente a Rubens Ewald Filho e Carlos M. Motta que, infalivelmente, foram o nosso Google naquela época). Mas realmente tratava-se de um filme obscuro e, mesmo com todas as informações extras, não foi possível esclarecer que produção era aquela.
Em 2001, tive a oportunidade de ir a Los Angeles e conhecer a School of Cinematic Arts na University of Southern California. Perguntei aos professores de lá sobre o filme e, como era de se esperar, ninguém conhecia. Entretanto, a professora de História da Animação, Christine Panushka, indicou-me um livro sobre todas as animações de longa-metragem produzidas no mundo até a data daquela publicação. Um livro editado por John Halas, em 1977, intitulado “Full Length Animated Feature Films”.
De repente, uma luz veio ao túnel. Encontrei listada uma coprodução franco-italiana de 1956, intitulada “Une fée… pas comme les autres”, dirigida por Jean Tourane. Com letras bem pequenas, a ficha técnica indicava também o título na Itália: “Il paese de Paperino”. Acessei imediatamente a internet e encontrei uma revista francesa da área de Ciências Humanas que citava um artigo contendo uma sinopse do filme. Meus olhos brilharam quando percebi que se tratava de uma proeza técnica realizada com animais ao vivo, em que um valente patinho salva a cidade dos malefícios cometidos por um macaquinho invejoso. Lá estava ainda a informação de que, nos Estados Unidos, o filme se chamara “The Secret of Magic Island”. Pude verificar o cartaz e poucas imagens, mas restava a dúvida se aquela era mesmo a produção a que eu tinha assistido.
Minha única lembrança concreta, confirmada pela minha mãe, era uma sequência em que o travesso macaquinho entrava num salão de beleza, modificando o termostato dos secadores, enquanto as senhoras galinhas se embelezavam. Como resultado, os pescoços das esnobes galinhas ficavam com as penas queimadas.
O próximo passo seria encontrar o filme disponível em algum lugar. Bem, naquele momento, não pude vislumbrar nada que indicasse essa disponibilidade. Passaram-se meses e, numa das insistentes buscas, encontrei um título francês listado no acervo da biblioteca de uma renomada universidade em Taiwan. Foi tudo por mero acaso, pois a lista do acervo estava em mandarim; mas, por sorte, nos títulos estrangeiros, que eram poucos, manteve-se o original.
Escrevi, então, ao bibliotecário-chefe, sabendo da dificuldade que seria conseguir uma cópia. Algumas semanas depois, recebia uma elegante resposta, informando que ele providenciaria, sim, uma cópia que, no original, estava no suporte laserdisc proveniente do Japão. Ele ainda me disse algo inacreditável: se eu tivesse paciência, ele faria essa cópia em DVD, pois a biblioteca havia encomendado um gravador de DVD que, naquela época, era algo a ser ainda brevemente lançado no Japão. Claro que agradeci, confirmando que, depois de aguardar o acesso àquele filme por 32 anos, nada me custaria estender a ansiedade por algumas semanas.
E não é que, menos de um mês depois, um carteiro de Los Angeles bate à minha porta, entregando um pequeno envelope bem protegido. Abro-o e encontro um DVD-R proveniente de Taiwan com o título do filme impresso! Ligo o monitor e os créditos aparecem. Corro o tempo do filme mais rapidamente e chego à sequência do salão de beleza, com o macaquinho fazendo suas traquinagens… Tudo estava lá! Os fragmentos que minha memória havia registrado. Bem, aos poucos, o filme foi perdendo o foco, mas não por causa da qualidade da cópia ou do DVD: eram meus olhos umedecidos.
Heitor Capuzzo é professor titular da School of Art, Design and Media da Nanyang Technological University (Cingapura). Foi também professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais e da State University of New York – University at Buffalo. Doutor em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado na School of Cinematic Arts – University of Southern California, onde atuou como professor visitante. Dirigiu os curtas-metragens “Estranho Sorriso”, “Boa Noite” e “Pula Violeta”. Foi crítico de cinema do “Diário do Grande ABC”, entre 1980 e 1989. Publicou: “Cinema – a aventura do sonho”, “O cinema além da imaginação”, “Alfred Hitchcock: o cinema em construção”, “Lágrimas de luz”, além de organizar a coletânea “O cinema segundo a crítica paulista”.
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Clique aqui para assistir ao trailer original norte-americano de “No Mundo das Fadas” (Une fée… pas comme les autres, 1957) e aqui para ver a sequência do cabeleireiro a que Heitor se refere.
Não consegui não me emocionar com o relato do grande Heitor Capuzzo. Pessoa querida e profissional excepcional, que foi parte muito importante da minha formação acadêmica! Morro de saudades. Do mestre e da pessoa!
Pôxa, a tela do meu computador também acaba de perder a definição. Texto lindo, um lindo amor pelo cinema, vou salvar e guardar este post. Se tem um amor que eu entendo bem, é aquele pelo cinema. Muito obrigada por compartilhar esta estória.
Perdoem-me por amar um pouco mais as Letras que o Cinema. Que texto deliciosamente vivaz é esse, sobre a beleza da revelação?! A gente começa lendo, então ouve, e de repente vê, e vibra expectante, e sorri, e reconhece. Que imensa dádiva é poder revisitar! Aí, já não importa se palavra ou imagem. É tudo, sempre, sobre o pendor da alma para o amor.