Cenas de infância: Luiz Bolognesi e a descoberta do mal em "Bambi"
27/03/13 16:16O diretor e roteirista Luiz Bolognesi lambe no momento uma cria que demorou seis anos para sair do ninho: o longa-metragem de animação “Uma História de Amor e Fúria” (classificação indicativa: 12 anos), que estreou no Festival do Rio de 2012 e entrará em cartaz em 5 de abril.
Roteirista de “Bicho de Sete Cabeças” (2001), “Chega de Saudade” (2008) e “As Melhores Coisas do Mundo” (2010), dirigidos por Laís Bodanzky, sua mulher, Luiz conversou comigo para um artigo da revista “Cult” sobre “Uma História de Amor e Fúria”.
Ao final, contou o episódio abaixo, em que relembra o impacto provocado nele por “Bambi”, o desenho animado da Disney.
Vamos ao depoimento de Luiz:
O primeiro filme que me marcou profundamente foi “Bambi” (1942). É um trauma na minha vida e até um paradigma do que eu faço. Tudo começa bonitinho, aquele bichinho com o tambor, vivendo entre as flores. Mas, de repente, o pai dele é morto por um incêndio que destroi a floresta. Fiquei absolutamente chocado.
Eu era muito pequeno, acho que devia ter cinco anos. Até hoje minhas filhas [de 10 e 8 anos de idade] não viram esse filme porque acho que elas não estão preparadas. Elas já viram “Uma História de Amor e Fúria”, “Harry Potter”, “As Crônicas de Narnia”, filmes que têm medo e terror, mas “Bambi” eu nunca deixei que elas vissem. Sempre penso que elas não estão prontas, de tão traumático que foi para mim.
Mas é um traumático no bom sentido, porque aquele impacto que tive com cinco anos, de que meu pai podia morrer, é uma coisa que não esqueço nunca. Saí de lá sem chão. Como assim, meu pai pode morrer? Ninguém tinha me falado que meu pai podia morrer. E o do Bambi morreu.
O filme trouxe ainda uma primeira informação que eu tive de que nós, os homens, podemos ser os monstros. Somos os caçadores. Aquilo é incrível, colocar no papel do vilão nós mesmos. Hoje pode parecer bobo, mas para uma criança de cinco anos… “Fuja, fuja, fuja que eles vêm aí”, e quem vem aí? Estou imaginando que é um ogro, e vem um caçador com uma arma na mão, atrás dos bichos?
Ali se embutiu em mim a ideia de que o entretenimento tem o poder, que pode ser traumático ou catártico, de tirar do lugar, de desestabilizar e de fazer pensar em coisas profundas, como esse filme que me disse que existia a morte e que a morte poderia se instalar na minha família. Que existia o mal, e que o mal estava dentro de mim.
“Bambi” me formou cinematograficamente, me fez entender que mesmo num desenho da Disney, que a gente recusa, abomina, tem o cerne da possibilidade de transformação profunda que o cinema apresenta. Isso está em lugares onde você espera, com eficiência máxima como em “O Som ao Redor”, um dos melhores filmes que eu já vi na minha vida, mas às vezes está em lugares mais inesperados, em obras de entretenimento como “Avatar”, que me impactou: os heróis são os índios da floresta, os vilões são uma empresa americana e um general do exército, e é a maior bilheteria da história do cinema. Um filme feito por Hollywood, e extremamente subversivo. Esses paradoxos estão presentes no cinema e eu os respeito.
Eu me lembro de uma aula de catecismo em que a professora disse que a gente deveria amar Deus mais do que todas as coisas. Ouvi aquilo e levantei a mão: mas professora Irani, quando a senhora diz amar mais do que todas as coisas, não mais do que os pais da gente, né? E ela: “claro, amar mais do que o seu pai e a sua mãe”. Saí da escola [em Itu, onde Luiz morava] para ir a pé até a minha casa, chorei no caminho. “Mãe, preciso falar com você, a professora diz que devo amar Deus mais do que você e o papai, mas eu não consigo.” E chorava.
“Bambi” teve para mim um impacto fundador parecido com isso. Tem gente que diz que cinema não muda a realidade. Muda. Eu acho que muda pra caramba. E nao é por ser engajado. É por trazer uma nova linguagem. O cara que está acostumado só com a narrativa da telenovela das oito abre a cabeça dele quando entra em contato com outra linguagem, outra narrativa. Ele descobre que dá para andar de lado também. O cinema tem esse poder transformador. Não precisa ser engajado, de esquerda. Um cinema que experimenta com a linguagem abre mentes.
Concordo plenamente com Luiz, e ainda retomo frase do próprio Walter Elias Disney ao dizer que seus filmes de animação não são feitos para crianças. De fato, não deve existir filme mais traumático que Bambi, em que a mãe dele é morta por um caçador, e O Rei Leão, em que o pai do simba morre numa emboscada. – tanto que minhas primas não conseguem assistí-los até hoje. Mas é isso que deve chamar a atenção e tirar o esteriótipo de que só criança gosta de “desenho”. Aliás, espero ansiosamente por “Uma História de Amor e Fúria”.