Cenas de infância: Cristiano Burlan, Oliver Twist e o ratinho Fievel
09/05/13 07:00Os relatos da série Cenas de Infância, que venho recolhendo no blog, tratam em geral da primeira experiência de ir ao cinema. Um ou outro convidado se lembra, como ocorreu com Christian Petermann, de alguma sessão posterior.
É o caso também do cineasta e professor Cristiano Burlan, que conheceu o cinema em Porto Alegre, mas que viveu a primeira sessão inesquecível já em São Paulo, aos 11 anos.
Burlan ganhou, em abril, o prêmio de melhor longa-metragem brasileiro do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários com seu trabalho mais recente, “Mataram Meu Irmão”, que trabalha com memórias pessoais.
A seguir, Burlan fala sobre a importância de um ratinho russo em sua vida e em sua trajetória profissional.
A primeira lembrança que tenho do cinema é muito antiga, ainda remete à minha infância em Porto Alegre sendo levado pela minha mãe e pelo meu pai para ver os filmes dos Trapalhões no Cine Leão. Um cinema à moda antiga, com colunas neoclássicas e o cheiro de pipoca impregnado no ar. Mas, naquele momento, ainda não tinha passado por uma experiência catártica.
A primeira grande emoção que tive dentro de uma sala de cinema foi aos 11 anos de idade, já morando em São Paulo.
Em 1985, mudamos de Porto Alegre para cá. Logo que chegamos fomos morar num bairro muito pobre em Osasco, chamado Olaria do Nino. Meu pai trabalhava como pedreiro, minha mãe era empregada doméstica. Casa muito simples e pequena, e o dinheiro sempre muito curto.
Um dia acordei e pedi à minha mãe dinheiro para ir ao cinema, mas disse para ela que gostaria muito de ir sozinho pela primeira vez. Ela me falou que não tinha o dinheiro naquele momento, mas que iria juntar e que no final do mês me daria. Aguardei ansiosamente.
Naquela época estava lendo um livro que me marcou profundamente, “Oliver Twist”, de Charles Dickens, cujo protagonista é um órfão. Um dos temas do romance é a delinquência provocada pelas condições precárias da sociedade inglesa na era vitoriana, no século 19.
E o filme que escolhi assistir foi “Fievel, Um Conto Americano” (An American Tail, 1986). Saí de Osasco sozinho, de ônibus, e fui até o Shopping Eldorado, em Pinheiros. Tinha 11 anos de idade na época e o ano era 1986. Lembro que, quando cheguei na bilheteria, todas as crianças estavam acompanhadas dos seus pais, o que me deixou um pouco triste. Mas não me abati, porque estava tomado por uma sensação incrível de liberdade. Estava me sentindo um adulto indo sozinho ao cinema.
Minha mãe tinha me dado o dinheiro certinho para a passagem, o ingresso, pipoca, refrigerante e um drops Dulcora.
Havia chegado o grande momento. Entrei na sala, as luzes se apagaram e a projeção começou. Nunca vou esquecer a sensação dúbia de medo por estar só e, ao mesmo tempo, de ter descoberto o lugar mais seguro do mundo para se estar durante a vida.
“Fievel, Um Conto Americano” se passa na Rússia, em 1885, quando a família de ratos russo-judaica Ratoskewitz decide imigrar para os EUA, à procura de uma vida melhor. Fartos dos ataques dos gatos, os Ratoskewitzes acreditam que seus predadores não existem no “novo mundo”. Durante a viagem de navio, o pequeno Fievel é levado por uma tempestade, sendo separado da família. Ao chegarem, acreditam que perderam Fievel para sempre.
Mas ele também consegue chegar a Nova York, dentro de uma garrafa, e é ajudado por um pombo francês chamado Henri. O pequeno ratinho parte em busca da sua família, e logo começa a descobrir a dura realidade desse “novo mundo”, onde afinal também existem gatos.
A impressão que tenho até hoje dessa experiência é que tudo o que passei pela minha vida e o que me tornei tem a ver um pouco com esses dois personagens, com Oliver Twist e com o ratinho Fievel. Passei mais tempo da minha vida dentro de uma sala de cinema do que fora dela e tenho uma certa resistência a perceber o mundo por um prisma da realidade. E, sempre que volto a esse momento catártico e epifânico da minha vida, me lembro de uma frase de Chaplin: “Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação”.