Três Corações celebra Dona Clotilde
24/05/13 17:05“A professora primária recebe pouca orientação. Ela é capaz de destruir uma criança por ignorância e inexperiência. As crianças estão viciadas em televisão. Antes, havia só o rádio, que não escravizava tanto. E os costumes eram outros. Os pais passavam mais tempo com os filhos.”
Palavras de Clotilde Iemini de Rezende Brasil (1913-2008), que seus alunos — milhares deles, em quase 80 anos de magistério — chamavam de Dona Clotilde.
Figura adorável, que conheci em 2005, ao entrevistá-la para um perfil publicado pelo extinto caderno Sinapse da “Folha”. Era uma instituição de Três Corações (MG), onde viveu a maior parte do tempo (nasceu em Varginha) e onde todo mundo a conhecia.
(Antes que você pergunte: Pelé não foi aluno dela. Eis aí um título que ele não pode exibir na sua imensa galeria de troféus.)
Volto a falar de Dona Clotilde porque a sua família e a Câmara Municipal de Três Corações abrem neste fim de semana a celebração oficial pelo seu centenário de nascimento.
No próximo domingo, dia 26, às 19h, haverá missa na Igreja Matriz de Santa Rita de Cássia. No dia seguinte, às 19h30, a Escola do Legislativo “Benefredo de Souza” promoverá o encontro “A saudade vira história”.
Abaixo, o perfil publicado no Sinapse de 29 de março de 2005.
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Senhora do ensino
Primeira professora do educador Rubem Alves, dona Clotilde, 91, mantém-se na docência após 73 anos de carreira
Sérgio Rizzo
enviado especial a Três Corações (MG)
Tia Titinha considera a família “muito chaleira” — modo zombeteiro de dizer que filhos e netos são excessivamente zelosos com ela. Reclama que gostaria de ir sozinha ao trabalho, mas há sempre alguém para levá-la e buscá-la. De vez em quando, ela burla a vigilância. Uma das filhas conta que, semanas atrás, a encontrou na igreja, a três quilômetros de casa. Não tem como ir muito longe sem que a descubram. Em Três Corações (MG), é personalidade quase à altura de Edson Arantes do Nascimento, o cidadão mais famoso da cidade.
Pelé saiu de lá criança, sem conquistar um título de muita estima na região: o de ser aluno de tia Titinha, ou dona Clotilde. Filha mais velha de imigrantes italianos (o pai era confeiteiro), ela nasceu em 1913, em Varginha (MG), teve nove irmãos (cinco estão vivos) e, em 1930, formou-se professora. Quatro irmãs seguiram o mesmo caminho. “Naquele tempo, a mulher tinha poucas oportunidades. Só podia ser professora ou estudar música.”
Começou a trabalhar no ano seguinte, no antigo Grupo Escolar Afonso Penna, na cidade natal. Só abandonou a sala de aula — dois casamentos, sete filhos e vários endereços depois — em 2001. Mesmo assim, não se aposentou. A Unincor (Universidade Vale do Rio Verde), onde lecionava as disciplinas de lingüística, prática de ensino e língua portuguesa, propôs que assumisse um cargo de assessoria aos alunos de pós-graduação.
“Enquanto não me mandarem embora, continuo a trabalhar”, diz Clotilde Iemini de Rezende Brasil, que completará 92 anos em maio. A longevidade foi coroada com a defesa, em abril de 2003, da dissertação de mestrado sobre a ironia na obra do escritor português Eça de Queiroz (1845-1900). O auditório da Unincor estava lotado e, segundo ela, atento.
“Sei que deu certo porque a platéia, silenciosa, ria quando eu estava lendo as passagens engraçadas”, avalia. “Foi uma festa muito bonita.” Poucas semanas depois, sofreu uma trombose que, somada a um problema de calcificação, lhe roubou parte da visão. Graças a óculos e luminárias especiais, ela se mantém ativa.
“A idade é um aplanador de dificuldades”, diz. Suas férias terminaram em 18 de janeiro. De segunda a quarta, das 8h às 11h, ela atende a alunos e professores em uma pequena sala da universidade. De certa forma, mantém a rotina das aulas: em vez de somente assinalar os erros em dissertações e teses, prefere explicar os porquês. Pode uma frase começar com pronome oblíquo? A resposta se torna longa explanação histórica sobre o tema.
Por causa disso, leva sempre trabalho para casa — o que não a impede de arrumar tempo para cuidar das plantas, preparar semanalmente um bolo de fubá sem fermento para as crianças da família (são 17 netos e dez bisnetos, mais dois “no forno”), participar de reuniões no círculo literário de Três Corações, fazer palestras, esclarecer dúvidas ao telefone, ir à missa aos domingos e ler-ler muito.
A lista de preferências começa com uma solitária ressalva: José Saramago. “Ele não respeita a minha religião; li toda a obra, mas não consegui gostar”, diz, mais em tom de lamentação do que de crítica. Jorge Amado, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz são as lembranças afetivas imediatas. E Monteiro Lobato, “muito”. “Ele era discriminado quando resolvi batizar com o nome dele a biblioteca da escola em Varginha”, orgulha-se.
O tom de voz muda, no entanto, quando menciona a pedagoga russa Helena Antipoff (1892-1974). “Eu tinha saído da escola despreparada e sem experiência, mas firme nas intenções. Helena, que era iluminada e amava muito as crianças, supervisionava em Minas Gerais um curso de aperfeiçoamento para professores-orientadores rurais, para nós da roça.” Na época, década de 40, dona Clotilde vivia com o primeiro marido em uma fazenda de Três Corações e dava aula para as crianças do lugar, incluindo os próprios filhos.
O curso a apresentou ao “método global” de ensino, que visa ao “desenvolvimento harmônico da criança em todos os sentidos”, e transformou sua percepção sobre o papel do educador.
Disposta a voltar para a cidade com o nascimento do sexto filho (teve sete), recuperou seu cargo na rede estadual e foi trabalhar no Grupo Escolar Bueno Brandão, em Três Corações. “Sempre achei que o equilíbrio, o progresso e a felicidade têm solução pela educação”, afirma. Mede as palavras, porém, ao falar, contrariada, dos “fatores negativos” que influenciam o sistema educacional brasileiro hoje. “A professora primária, por exemplo, recebe pouca orientação. Ela é capaz de destruir uma criança por ignorância e inexperiência.” Dona Clotilde pensa também que a televisão faz uma diferença muito grande. “As crianças estão viciadas. Antes, havia só o rádio, que não escravizava tanto. E os costumes eram outros. Os pais passavam mais tempo com os filhos.”
Foi na pequena sala onde trabalha, na universidade, que recebeu a notícia de que havia se tornado conhecida muito além dos limites de Três Corações. O educador e escritor Rubem Alves, colunista do Sinapse e um de seus ex-alunos em Varginha, a mencionou em uma crônica publicada no caderno há dois anos e que repercutiu por onde houvesse ex-alunos. Ao saber que ela estava viva, Rubem Alves escreveu outra crônica, em novembro do ano passado, especialmente para homenageá-la. “De uma hora para outra, ao figurar no texto de um escritor conceituado como ele, minha vida adquiriu novo sentido”, diz. Admite, no entanto, que não se lembra dele quando criança. “Gostaria muito, mas não consigo. Todo ano tinha aluno novo. E, 73 anos renovando, não dá para guardar todos.”
Há pouco tempo, o fisioterapeuta perguntou a ela se sentia falta das crianças. “Respondi que, quando parei de lidar com elas para me dedicar só ao ensino universitário, nos anos 80, achei todo mundo feio. Não gostei do outro lado da vida. A convivência com as crianças me fazia sentir o mundo melhor. E, se existe pecado que não levo, é o de ter humilhado, uma vez que fosse, uma criança.” Nenhum dos sete filhos se tornou professor. “Teria achado bom se algum quisesse”, lamenta. A vingança veio com os netos -vários dão aulas e quatro são doutores. A um deles, em momento de indecisão profissional, recomendou que abandonasse a carreira de professor. “Aí ele me disse: ‘Ah, vó, mas é tão bom dar aula'”, lembra tia Titinha, com o sorriso de quem, no fundo, também ela um pouco “chaleira”, ouviu o que desejava.